Publicaremos aqui uma série de contos, decorrentes duma mesma narrativa intitulada A Cidade Era A Noite. Os episódios não sõ sequenciais, não há linearidade nas postagens. Deixo aqui o primeiro conto dessa narrativa.


Certa noite na esquina de um bar

Estávamos num bar de esquina, bem próximo a minha casa. Eu, Ludovico, Maria e um pretensioso amigo dela. Bebíamos, ríamos e comentávamos sobre uma bobagem qualquer. Vistos assim, qualquer um de nós passaria desapaercebido, nenhum espectador comum identificaria as minuciosidades que particularizavam cada um ali naquela mesa. Sei disso, pois até então nem eu entendia bem o alcance das estranhezas que nos rodeavam. Nos meus 23 anos de vida, tudo o que me cabia era a noite.
Desenebriei-me dos meus pensamentos soltos e foquei novamente minha atenção a conversa. Maria, loura e linda, conversava com Ludovico.
- ...não seriam os cigarros? Você anda fumando muito, Ludovico?
- Talvez sim, talvez não. Que importa?
- Muito bem, pergunte aos seus pulmões. - respondeu Maria, dando de ombros.
Ludovico, com sua pose de inglês, apenas virou outro copo e o enxeu de cerveja.
O amigo de Maria era o único que parecia interessado em alguma coisa ali. Prestava atenção em tudo, e em todos, com um sorriso quase boçal no rosto. Apoiava-se com os cotovelos na mesa, balançava a cabeça positivimanete ao menor sinal de fala. Não me lembro o nome dele, e acho que você também não irira se lembrar, leitor. Com certeza acompanhava a moça com alguma pretensão, o cretino.
Maria era linda. Para os diabos com todas as outras mulheres do mundo, se Maria ainda existisse! Pois bem, deixe-me descrevê-la.
Loura, olhos azuis (mas um azul escuro e denso, não aqueles azuis-pendendo-para-verde, aqueles são sem graça), cabelos longos e estatura mediana.
Não, não, ela era bem baixinha. Desculpem o engano, leitores, tive que me levantar agora e imaginar Maria, para me certificar de sua altura. As pessoas sempre parecem mais altas em minhas recordações. De qualquer forma, Maria não parecia brasileira, muito menos goiana, menos ainda goianiense. Sendo assim, sua beleza ítalo-brasileira era um ímã de olhares. Não era fácil sair com Maria. Não para mim. Esse babaca sentado ao seu lado...Ah! Ela tão linda, se dando ao trabalho de estar com alguém tão ínfimo, tão insiginificante perto de sua grandeza! Pobre Maria...pobre diabo!
Enchi mais um copo de cerveja. Permanecia calado, prestando qualquer atenção as palavras soltas que me chegavam aos ouvidos. Um instante depois, meu copo já se esvaziara, e mais um tempo lá se fora outro copo.
Chegou-se então numa hora mais avançada da noite, quando os casais das outras mesas já ébrios se deslocavam para seus carros. Eu, dava ouvidos aos gostos de Maria. O amigo pretensioso mantinha a mesma cara de interessado, apesar do enorme cansaço que deveria estar sentindo em balançar tantas vezes a cabeça, concordando com tudo. Ludovico, desde algum tempo, permanecia calado. Vez ou outra, imaginava um violino por sobre o ombro e tocava algumas notas no ar. Ah, sim! Ludovico era músico, dos bons.
Nessa determinada cena, entre uma mesa repleta de garrafas esvaziadas, levanto-me para atender ao chamado da natureza.
Pesava-me a bexiga depois de tanto álcool. Levantei com uma brando gesto de licença para Maria. Vou lentamente, cuidando para aparentar menos embriaguez, andando pelo chãozinho de pedras que levava ao sanitário masculino.
O sanitário do boteco era porco, nada de surpreendente. A luz amarelada ofuscava minha visão. Ai! Me doía a cabeça tanta luz!
Entrei. Passei pela porta. Fechei-a. Haviam três boxes. O primeiro estava fechado. O segundo ocupava um bêbado, agachado com a cabeça bem próxima a borda, e isso me deu asco. Entrei no terceiro, fechei a porta, arriei as calças e mijei. Merda! Tudo gira! pensei. Fechei a tampa do vaso e sentei.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAH!
Acordo de sopetão, com o grito. Encontrava-me sentado ainda na privada, com a cabeça apoiada na parede atrás de mim. Defronte a mim, o boxe do banheiro aberto. Um gordo gritava, olhando algo que estava no boxe ao lado. Ele tremia.
Com certa dificuldade levanto-me e vou ver o que é.
O bêbado, que antes repousava com a cabeça sobre a borda da privada, jazia estirado no chão do boxe, numa posição fetal. O piso do banheiro estava enlameado de sangue. Fora a visão mais grotesca que eu já tivera, até então. Os olhos do mesmo estavam abertos e a língua para fora, como se o defunto houvesse sido sufocado. Estava pálido. O sangue que antes corria em suas veias ensopava-me os sapatos de couro.
Foi demais para mim, procurei a pia mais próxima e vomitei.
O gordo já havia saído do banheiro, para procurar ajuda, provavelmente. Jogo uma água no rosto e me assusto com o que vejo. Minha boca estava avermelhada. Muito avermelhada. A manga da minha camisa, que era branca, estava manchada dum vermelho ralo.
Tomo coragem e olho novamente para o morto. Dobro as barras da minha calça e chego bem perto ao boxe onde ele jazia. Procurei algo que eu temia já a algum tempo. Procurei algo que me atormentava todas as noites desde algum tempo atrás, procurei a evidência que me daria a certeza dos meus medos mais infantis estarem se concretizando, e a achei.
No pescoço do morto haviam três buracos.
Desesperado, saio do banheiro as pressas. O bar já estava quase vazio. Ao longe via o gordo voltando com mais dois homens e um paramédico, em socorro da vítima. Na nossa mesa, Maria estava levantada, atônita. Seu amigo estava debruçado sobre a mesa. Maria se volta a mim. Eu, com a certeza de que a notícia do banheiro já chegara aos seus ouvidos, já preparava a ela uma explicação. Mas não era necessária.
- Ele sumiu! Ele sumiu!
- Co...Como assim, Maria? Quem?
- Ludovico! Sem mais nem menos, ele se levantou, andou alguns passos em direção a rua e sumiu!
- Você diz que ele foi pra casa? Mas é você quem dirigia...
- Não! Você não entende, ele simplesmente sumiu, sumiu.
E atirou-se nos meus braços, a pobre. Eu não entendia ainda o tal sumiço de Ludovico. Naquela época Ludovico ainda não sumia. Porém, com o passar do tempo, fomos nos acostumando a isso.
Acordei o amigo de Maria, levei-os até o carro e dirigi.
No momento, uma sobriedade fria me guiava. Saímos antes que a ambulância terminasse de levar o morto para fora do banheiro, de modo que Maria não ficou sabendo de nada. A moça dormia agora, no banco do carona. Coitada! Estava tão assustada! Imagina se eu lhe contasse o episódio do banheiro! Não, pensei, um anjo não deve se meter com assuntos tão terrenos!
Apesar da frieza, minha mente estava em fragalhos. Não me preocupava as eventuais consequências da morte daquele indivíduo, pois questão mais aterradora passava-me pela cabeça.
E dirigindo aquele carro no tardar da madrugada, só me vinha uma única pergunta na cabeça: Fora eu?

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