Cidade Era A Noite - Ato I - Dois Focinhos


Dois Focinhos era um cachorro diferente, ele tinha dois focinhos.
Sim, não é uma figura de linguagem, é uma deformação. De tudo, era normal.

Tal deformação de nada lhe servia. Dois Focinhos não cheirava melhor e os odores que sentia eram os mesmos sentidos por qualquer outro cão. Gozava de boa forma e de excelente saúde para os seus oito anos de vida.

Não era um cão raivoso, mas evitava contatos prolongados com humanos, pois estes haviam sido
muito maldosos com ele. Nem todos, era certo, pois uma mulher, bem se lembrava, dera-lhe uma casinha de presente uma vez. Colocou-a de baixo duma árvore numa pracinha e cobriu-a com lona. Esse era o lar de Dois Focinhos.

Ele não se lembrava de como havia nascido, não se lembrava de sua mãe, nem se tivera irmãos. Bateram muito nele, quando pequeno. Dois Focinhos acabou tomando raiva de qualquer bípede, e assim um tempo foi, até que se esquecera da dor e voltou a conviver com os humanos, com uns até brincava na rua. Mas a maioria era invadid de asco e medo ao analisarem o focinho duplicado de Dois Focinhos.

Comia o que achasse, e vez ou outra a mulher gentil que lhe dera a casinha também lhe trazia restos, e até ração. Quando estava sedento, descia por um bosque e bebia a água dum córrego. A água era suja, mas para Dois Focinhos não fazia diferença. Então, assim seguia sua vida canina.

Havia dias em que Dois Focinhos se sentia muito só, e noites em que Dois Focinhos acordava inquieto, as patas formigavam e o coraçãozinho de cahorro batia acelerado, os olhos se abriam e ele vislumbrava a pracinha, do interior de sua pequena moradia encostada junto a árvore.
Essa era uma noite assim.

Dois Focinhos acordara assustado, as patas formigando. Deu-se a lambê-las, e depois a choramingar. Olhava com seus olhos miúdos a praça que se escondia por trás das sombras da noite. A luz falha de um poste iluminava a rua mais adiante. Tudo estava quieto, escutava-se nada mais do que o som distante de carros. Dois Focinhos não sabia, pois não conhecia o calendário, mas aquela era uma noite de domingo.

Dois Focinhos sentiu-se inquieto. Levanta-se e sai da casinha. O quente ar noturno do Centro-Oeste toma conta dos seus pulmões. Dois Focinhos tem sede. Decide ir até o corrégo, beber água.

O lugar era muito escuro e meio afastado. Dois Focinhos teve medo, mas tinha sede, e esta era maior. Desceu com cuidado o barranco que levava até o corrégo e bebeu a água lamacenta do córrego.

Eis que luzes cegam os olhos de Dois Focinhos. Eram faróis, um carro aproxima-se do córrego, e estaciona no alto do barranco. Dois Focinhos se esconde rapidamente entre uns arbustos e observa.

Desce um homem do carro, dá a volta no veículo, puxa com força do banco do carona um segundo homem e joga-o ao seus pés. Chuta-o sem pudor algum. Abaixa-se e bate-lhe na cara, e cospe, e bate-lhe mais. O homem não reagia, apenas chorava baixo, quase um lamento. O agressor não emitia som algum, apenas surrava o outro.
Por fim, o agressor volta ao carro e pega uma arma. Um único disparo, e o homem tomba. O agressor limpa a arma e empurra o corpo barranco a baixo, que bate sai rolando inerte, acerta algumas pedras e cai no córrego, manchando as águas de vermelho. Águas estas, que Dois Focinhos acabara de beber.

Nesta altura, Dois Focinhos já havia abandonado seu esconderijo. Olhava para o assassino, há uns trinta passos dele, com seus olhos negros e brilhantes. O assassino, por sua vez, apenas entra no carro e abandona o lugar, deixando o corpo estatelado no córrego.

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